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Já há muito tempo que não me lembrava de sentir uma dor tão profunda...


Já há muito tempo que não me lembrava de sentir uma dor tão profunda como a que senti nos últimos dias...

Quando sentimos um ser que amamos a agonizar perante o final da sua frágil vida e temos de tomar a decisão de o ajudar e deixar partir...

Um ser que esteve presente em todos os momentos dos últimos dez anos da nossa vida.

Foi a minha gata, a Shanti, mas a dor que se sente está para além... muito para além do ser.

O contacto com a evidência da morte... faz-nos tocar todas as partes sombrias do nosso próprio ser.

A fragilidade da nossa condição humana, a importância e o valor do que sentimos e é activado no nosso coração a cada presença. Que mais dia menos dia se fará ausência.

O que fazemos com o nosso tempo? A quem ou a quê entregamos a nossa disponibilidade e energia?

Como vivenciamos de facto o amor dos que fazem parte da nossa vida?

Como aproveitamos cada instante da sua presença, entrega e disponibilidade?

O que faríamos de diferente se fossemos a cada dia mais e mais conscientes da nossa própria finitude?

Como lidamos com a nossa própria dor?

Nos processos terapêuticos que acompanho, e neste em concreto que eu própria estou a viver... é importante perguntar: será que nos fazemos realmente disponíveis para sentir a dor?

É fácil, tão infinitamente mais fácil fugir da dor...

Mas a dor, essa que toca o âmago do nosso ser, merece e necessita ser vivida. Sentida. Tal como nos deleitamos perante um momento de alegria intensa.

Mas não é fácil criar essa disponibilidade para sentir a dor.

É preciso coragem, ousadia, para mergulhar bem fundo nesse universo.

Mas é essencial... tão essencial.

Permitirmo-nos sentir a dor faz-nos mais humanos.

Remete-nos à condição do que somos.

Pequenos. Infinitamente pequenos para lidar e lutar contra o destino que nos aguarda a todos.

É impossível sermos tocados, realmente tocados pela presença da morte na nossa vida e continuarmos iguais.

Hoje a minha gata. Amanhã tu e eu.

Como aproveitaremos esse momento? Esse limbo?

Esse espaço que separa o momento em que estamos aqui... do momento em que soltamos a nossa expiração final?

Acredito na continuidade da vida.

Acredito também que nada toca a nossa realidade por acaso.

Prestar homenagem aos que amamos é essencial.

Eu diria ainda mais... é urgente.

Abrir o nosso coração também.

É tão fácil querermos fechá-lo quando dói...

Mas definitivamente sinto que esse não é o caminho.

E a minha escolha em partilhar a dor que sinto neste momento tem um propósito.

O propósito que relembrar que cada momento é uma dádiva.

Real.

Para além do cliché que todos conhecemos e que soltamos da boca para fora tantas vezes.

Porque temos tanta dificuldade em lidar com a morte dos outros?

No fundo pela imensa dificuldade que temos em lidar com a inevitabilidade da nossa própria morte.

Simples assim.

Esse acredito ser também o principal motivo pelo qual tantas vezes não sabemos lidar com o sofrimento de quem com ela lida.

E preferimos virar os olhos, e as costas, à dor e sofrimento.

Mais do que a dor que sinto, dói sentir a dor dos que amo nesta mesma partida. Principalmente a dor dos meus filhos. Que tinham neste ser uma companheira, amiga... uma presença constante desde o seu primeiro dia nesta vida.

Ensinam-nos, tantas e tantas vezes inconscientemente, a não sentir.

Frases como "não chores" ou "já passou" ecoam profundamente no nosso coração e na nossa memória. Tantas foram as vezes em que a ouvimos ao longo da vida.

Faço mesmo por não as dizer. Faço o esforço consciente por amparar os que amo, nesse processo de sentir a dor. Sentir a morte. Sentir como cada momento é precioso. Mesmo os finais. Os de despedida. Aqueles em que temos de dizer adeus. Ou até já...

Gostaria de ter sido preparada dessa forma. Não fui. Como talvez tu que me lês não tenhas sido.

Mas saber dizer "está tudo bem" é essencial.

Está tudo bem quando dói. Está tudo bem quando dói muito. Está tudo bem quando choramos. Está tudo bem quando sentimos saudade. A saudade do nunca mais.

Faz parte. E isso também é vida.

Quando lidei com a morte mais difícil da minha vida, a da minha mãe, quase a seguir ao momento em que dei à luz a minha filha, recordo de ter ouvido uma palestra em que um monge budista dizia que toda a morte de que temos conhecimento na nossa vida, quer conheçamos ou não o ser em causa, tem um propósito essencial: ligar-nos ao valor da nossa vida. Nunca mais esqueci essas palavras.

Possa assim cada morte ligar-nos ao que é essencial.

Possa assim a morte da Shanti, ajudar-te a ligar ao que é essencial para ti. Realmente essencial. E ao valor da Vida. Em ti, e para ti.

Porque quando a dor vem e nos toca... é fácil querermos fugir. É fácil também sentirmo-nos vítimas da vida e das circunstâncias.

Mas honestamente... não sinto mesmo que esse seja o caminho.

Não somos vítimas, nunca. E a vida acontece, tal como a morte.

E ambas estão o tempo todo de mãos dadas.

Fechar o coração não é opção.

Vamos sentir.

Sentir mais.

Mesmo quando aquilo que sentimos não é bonito ou desejável.

Porque tudo o que toca a nossa vida é para nós.

E o que toca o nosso coração... tem sempre o potencial de nos relembrar quem somos. De nos fazer maiores e mais humanos.

E de nos religar ao nosso propósito.

Para que estamos aqui?

Saibamos nós fazer esta pergunta e escutar a resposta sincera de um coração que se abre... e nos mostra o caminho

Em Paz.

Até sempre, Shanti.

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